O desporto na história do 25 de Abril (2)
Por António Simões
O 1º de Maio de 1974 viveu-se num ainda mais apaixonante hino à liberade – com Portugal a caminho de ver (em alvoroço e frenesim) Florbela Queirós em topless como símbolo da Nova República… «livre e democrática» e de, no Século Ilustrado, se notar que no mundo do espectáculo a moda passara a ser o nu.
Menos de um ano antes pela publicidade dos jornais andara a revista que incendiara o Parque Mayer com… «25 lindas mulheres»: Tudo a Nu com Francisco Nicholson, Rui Mendes, Henrique Viana, Anabela e Helena Isabel (Miss Portugal Fotogenia, depois de ter sido ginasta do Lisboa Ginásio, numa equipa que contava também com Isabel Bahia que haveria de tornar-se igualmente rosto marcante na RTP).
Não, no país ainda não andava tudo a nu – e, tendo o JN enviado à Censura nota assim: «Fafe. Protestos do clube local por os seus jogadores terem sido agredidos e ainda castigados. A direcção do clube vai reclamar para o Comando da GNR, em virtude da sua passividade perante o que se passou» –o Dr. Ornelas (responsável pelo Exame Prévio, nesse dia) mandou dizer: «É para cortar».
«Para cortar» foi ainda notícia que contava que «professores primários de Almeirim andavam descontentes e mal pagos, não queriam receber 6 escudos por hora» (2 escudos era o que custava, então, cada edição do jornal A BOLA). E, sem espanto, se proibiu igualmente«qualquer referência» ao facto de «ter sido atirado um pano a arder para dentro da residência na Chamusca de Carlos Amaral Neto, grande proprietário e presidente da Assembleia Nacional». E impedida ficou ainda notícia de «ter rebentado uma mina entre Viseu e Lamego, ferindo um soldado e matando outro, estavam a preparar-se para serviço no Ultramar.»
PORTUGAL E O FUTURO (À VISTA)
Ciente de que a Guerra no Ultramar já só teria solução política (e não militar) António de Spínola largou a ideia no livro que escreveu (sem imaginar, talvez, que a revolução se soltaria, mais ou menos insinuante, das suas páginas): Portugal e o Futuro.
Os 2000 exemplares postos à venda (por 100 escudos) ao meio dia de 22 de fevereiro de 1974 na livraria do Apolo 70 esgotaram em 15 horas. Quase em todo o lado aconteceu o mesmo entretanto – e, acabando de lê-lo, parece que Marcelo Caetano desabafou: «Um golpe de Estado é agora inevitável». Partindo de «fim-de-semana a ares» para o Buçaco, no regresso a Lisboa Caetano solicitou a Américo Tomás (o presidente da República que fora presidente do Belenenses) que o exonerasse de Presidente do Conselho e Tomás não o exonerou.
Afastando-se António de Spínola (tal como Francisco Costa Gomes) da chefia do Estado-Maior das Forças Armadas, Marcello Caetano voltou a solicitar ao Presidente da República que o demitisse – e a resposta de Américo Tomás saiu de um redondo vocábulo (como a da outra vez): «Não! Não e já é tarde para qualquer de nós abandonar o cargo!»
JOGADORES DO SPORTING PRESOS
Com Marcello Caetano no lugar de António Oliveira Salazar, Portugal deixara de ser o país da PIDE mas só no nome – ao transformar-se a polícia política em DGS:Direção Geral de Segurança. A União Nacional (o partido único do Estado Novo) tornara-se Acção Nacional Popular e a Comissão de Censura passara a Exame Prévio.
Não tendo a malha tão apertada como tivera antes, não deixava, porém, de ter censores a telefonarem para as redações dos jornais, embrulhando-lhes em cinismo (ou coisa pior…) os seus «conselhos», «conselhos» assim (ou parecidos): «O senhor Director-Geral da Informação pede o favor que não se dê a notícia de um acaso ocorrido em Aldeia do Bispo, Penamacor: duas crianças, por causa de uma bicicleta, mataram uma terceira». E se, por março de 1974, o DN pudera publicar notícia que dizia: «Em Verdelha do Ruivo, Alverca do Ribatejo, preocupa-se a população com a falta de água, de rede de esgotos, de um posto escolar e, ainda, com o facto de não dispor de um único local de convívio. A escolaridade da camada juvenil é muito baixa, por as crianças terem de percorrer a pé quase cinco quilómetros de sua casa à escola mais próxima» – meses antes a Censura (aliás, o Exame Prévio) impedira títulos assim: «Jogadores do Sporting presos, julgados e condenados em Newcastle».
Esse «incidente» em Newcastle resultara de Baltasar, Bastos e Marinho terem sido apanhados a sair de uma loja sem pagarem cassetes nos valor de 14,33 libras. Duas horas estiveram detidos, após o que juiz os condenou a pagamento de 20 libras cada um, mais 20 de despesas de tribunal e advogado. Recambiados de pronto para Lisboa, não entraram no jogo em que o Sunderland bateu o Sporting por 2-1, na primeira-mão dos oitavos de final da Taça das Taças. Vitória por 2-0 em Alvalade permitiu-lhe apuramento – e eliminando o FC Zurich, adversário seguinte foi o Magdeburgo, equipa da RDA (a parte comunista da Alemanha). A 10 de abril, na primeira-mão, os alemães saiu de Alvalade com 1-1. Sem poder contar com Dinis e Yazalde, em Magdeburgo a equipa de Mário Lino perdeu por 2-1 – e Fernando Tomé contá-lo-ia, depois: «Perto do final, o Marinho faz grande jogada pela esquerda, da linha de cabeceira deu a bola para trás, para onde eu vinha a correr… Olhei para a baliza, vi o guarda-redes e um defesa a deslocarem-se do primeiro poste para o lado contrário, toquei a bola para o lado de onde eles saíram, mas com tanta infelicidade o fiz que a bola saiu a rasar o poste, com eles batidos… Durante a noite delirei com o lance, puxei a trave uma data de vezes para ver se a bola entrava, mas não, não deu…»
NO COMANDO DA REVOLUÇÃO, BASQUETEBOLISTA
Nessa noite em que o azar afastou o Sporting da final da Taça das Taças, no Regimento de Engenharia 1, na Pontinha, estava já montado, num pré-fabricado (que servia de arrecadação do quartel) com as janelas tapadas com cobertores, o centro de comando da Revolução – formado por Otelo Saraiva de Carvalho, Garcia dos Santos, Sanches Osório, Luís Macedo, Fisher Lopes Pires, Victor Crespo e Hugo dos Santos.
Ao chegar à Escola do Exército, Hugo dos Santos logo revelou «tremendo o jeito para o desporto» – no voleibol, no andebol e, sobretudo, no basquetebol. Ajudou a fundar o CDUL (onde jogou) – e, presidente da Federação Portuguesa de Basquetebol (entre 1984 e 1992) viu, ainda em vida, a Taça da Liga de Basquetebol passar a ser Taça Hugo dos Santos. Morrendo no dia em que a República fez 100 anos (e ele tinha 77) continuava presidente da AG da Associação de Basquetebol de Lisboa – e, por querer ser cremado, pediu que fosse vestido à civil, murmurando-o: «a farda das Forças Armadas não é para queimar».
Ao chegar às bancas a 25 de abril de 1974, havia na primeira página de A BOLA desse dia um toque a premonição: Ponto Final.Claro, era o ponto final no sonho de o Sporting levar de Magdeburgo o passaporte para a final da Taça das Taças (contra o AC Milan, em Roterdão). O título da crónica de Aurélio Márcio numa das páginas interiores era: Nada a Censurar – antes pelo contrário, simplesmente faltaram os melhores. Também aí poderia insinuar-se capricho do destino: fora sobretudo a falta de sorte que traíra os sportinguistas – a falta de sorte e a falta de Yazalde e Dinis, os «dois melhores» que, lesionados, não puderam lá jogar.
Os indícios de abertura que Marcelo Caetano (o sucessor de António Oliveira Salazar) insistia em espalhar irritavam cada vez mais a ala radical do regime (que tinha como um dos seus mais fervorosos pontas-de-lança, em São Bento, Francisco do Cazal-Ribeiro, figura ainda mais marcante na história do Sporting) – e meses cruzara algumas edições de A BOLA o anúncio a Bonitas De Mais para Serem Honestas – o filme em que quatro mulheres muito sexiestentavam roubar ladrões algures pela Côte d´Azur. A sua estrela era Jane Birkin – que, por cá, tinha censurada a canção que já lhe dera a eternidade: Je t´aime… moi non plus. Escrita (em 1969) por Serge Gainsbourg (filho de judeu russo que se exilara em França) – o Vaticano correra a considerá-la pecado: «uma obscenidade por haver nela sons cantados de um orgasmo feminino». Por isso, a proibiram por cá, como a proibiram em Itália, em Espanha, no Brasil (e se na Alemanha comunista não a baniram, na Polónia e na Jugoslávia sim…)
EUSÉBIO E OUTRO BENFIQUISTA
Proibidas estavam por cá outras canções e outros cantores – e, por isso, a 24 de março de 1974 forças da polícia montaram cerco ao Coliseu dos Recreios por, no I Encontro da Canção Portuguesa, se cruzarem José Afonsocom Adriano Correia de Oliveira ou Manuel Freire comJosé Jorge Letria, entre outros proscritos. A Grândola, Vila Morena do Zeca (que tinha já censuradas muitas das suas canções) fora entoada em coro pelo público aos milhares que enchia a sala – e depois ouviu-se em brado: Abaixo a repressão!
Às 22.55 horas de 24 de abril (de 1974) nos Emissores Associados de Lisboa, João Paulo Dinis (que fora correspondente de A BOLA em Londres pôs a tocar E Depois do Adeus com que Paulo de Carvalho (que fora futebolista nos juniores do Benfica e companheiro de tropa de Carlos Lopes) ganhara o Festival da Canção. Foi a primeira senha para o arranque da Revolução – e às 00.20 horas (do dia 25) puseram-se as tropas em marcha através de Grândola, Vila Morena (na Rádio Renascença).
No cinema Politeama estava em cartaz Eusébio, a Pantera Negra – e mantendo-se o Quartel do Carmo, onde se acolitara Marcello Caetano, cercado pela coluna militar que Salgueiro Maia trouxera da Escola Prática de Cavalaria de Santarém (e o seu largo cada vez mais a transbordar de gente) às 4.05 horas da tarde de 25 de abril Feytor Pinto, o director do Serviço de Informação e Turismo, abeirou-se de um soldado para lhe murmurar: «Quero falar com o comandante das tropas do cerco» e conduzido a Salgueiro Maia revelou-lhe: ««Sou portador de uma mensagem para o prof. Marcello Caetano, talvez seja uma plataforma de entendimento». Voltando do interior do quartel, Feytor Pinto e Nuno de Távora anunciaram a Salgueiro Maia: «Agora vamos a casa do general Spínola». O propósito era comunicar-lhe da disponibilidade do Presidente do Conselho lhe entregar o poder… «para que o poder não caísse na rua» – e eram já 19.25 horas quando, capitulado, Marcello Caetano largou do Carmo dentro do blindado Chaimite.